domingo, 22 de março de 2009

Aurora
(a chegada da barra do dia)

De repente eu olho pro lado e me assusto. Me assusta o azul da manhã, apenas. Porque lá não estava. Traz medo pra mim a barra do dia. Porque mais uma noite não dormida, e tanto de você em mim, ainda. E sempre. E forte. É tanto amor contido que rasga o peito por dentro. Dói, sangra... Mas não é dor causada por ti. Não, não é tu quem faz, nem tampouco o amor que escolhestes. O amor que te escolheu antes de mim. Quem dói é a noite. Em mim. De quem a culpa é ninguém.

Eu tento defesa, meus instintos fazem que vão se transformar em violência pra que eu simplesmente sobreviva... E eu não me permito. Sou guerreira que não dá nenhum golpe. Porque a única inimiga é a barra do dia, que nunca desiste de berrar (pra humanidade!) a sentença da noite que não pode ser maior.

“Porque está amanhecendo?
Peço o contrário, ver o sol se pôr
Por que está amanhecendo?
Se não vou beijar seus lábios quando você se for?”
(Nando Reis, Relicário)


Travo dentro de mim uma terrível batalha da noite contra o dia... A turbulenta noite contra o azul, macio e silencioso começo de dia. Uma luta contra o ciclo, que simplesmente vai. Nascendo... Doendo. Sempre, inevitavelmente tão vazio de ti e insuportavelmente lotado de mim.


“Pois se jura, se escojura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor na orgia
Da luz do dia

É só o que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia

(Chico Buarque, Basta um dia)

Vaga-lumes nada vagam em mim. São precisos. Preciosos. Só de vê-los eu vou direto ao centro do peito, direto ao amor primeiro. O amor maior, da noite maior que ainda está por vir.

Vaga-lumes e estrelas. Noite plena. E solitária. A beleza do escuro me leva ao palco. Olhar no palco, corpo atento na platéia. Mente no fundo dos seres... A pouca luz no centro memória. De noites belas que não foram minhas, mas belas pude sabê-las. Da dança alheia que me envolve tanto. Tão sutil e generosa. Precisa. Traz ternura inteira em mim.

Saudade muito forte. De quem eu amo, do que nem sei. Saudade de uma história que eu ainda não vivi. Vontade dos contos belos que eu ainda não escrevi. Memória intensa das cenas que me tocaram tão amplamente... Da peça que tem permeado tanto os meus textos ultimamente. Peça de um quebra-cabeças previamente existente... Esse palco (de sempre) dessa vez (ainda mais do que sempre) me levou pra um lugar de mim que me faz inteira. Me completa. Donzela nos gestos, guerreira latente. Amante em pausa, em espera. Só imagens, e sons, e versos. Só eu. Só. Repleta. De noite...

Noite grande, mas não maior do que o que cabe em mim. Noite rara. Porque essa, em verdade, eu nem anseio fazer maior. Paz. Basta. Bastam esses segundos, essas imagens. Essas presenças no peito, essa solidão no fato – embaixo da lua, diante do vento. E cá, com meu centro, meus mestres na estrada. De pés tão distantes, no céu tão presentes... De luzes viventes, no peito, saudades.

Noite serena, noite de pausa. Noite pra se dormir, diferente de tantas outras. Não que não exista o álcool... E os anseios (pré-existentes). Mas o mar e o sol, no dia, foram mais fortes que a poesia da noite. No dia, areia suficiente pra não deixar nada esfarelar de noite. E a poesia da noite não foi sem fato.

Hoje eu me basto em mim...
_ _ _

[Esse texto eu escrevi em janeiro desse ano, no litoral, numa madrugada quente e deliciosa, em que me foi permitido acessar o céu
sem telhados nem nuvens, e com estrelas. E as negras árvores da montanha ao
fundo tinham luzinhas verdinhas piscantes...
"A noite estava maior". Portanto,
a ela eu me entregava. Não queria detê-la, como a tantas outras. Mas quis
apreender sua poesia (como sempre, como tantas outras). Principalmente porque
aquele escuro iluminado me remeteu ao "Donzela Guerreira", a peça de
dança-teatro dos meus queridíssimos mestres Juliana Pardo e Alício Amaral.
O
texto é uma reflexão pra mim. A publicação acaba virando uma homenagem a eles.
Assim espero...]